sábado, 14 de março de 2015

O dia em que vi um livro

Postado por Bia Kollenz às 19:20
*Antes de começar devo dizer que essa é uma cena de uma história que vem há muito tempo habitando minha cabeça. É sobre uma garota especial e sobre o mundo em que ela vivia. E fala também sobre como ela conseguiu mudar um monte de vidas. Vai parecer meio confuso porque é só uma cena dessa história toda mas decidi escrever para o desafio desse dia*


Eu caminhava pelas ruas da Grande Nação naquele dia. Havia acabado de sair do Instituto de Ensino onde escutei por horas seguidas a mesma ladainha de sempre. Coisas sobre como a união dos últimos países existentes, após a grande guerra, havia originado o nosso Estado proporcionando alimento para as pessoas famintas, maior justiça, igualdade... Sempre a mesma história. Eu era o único naquele lugar que não acreditava muito no que ouvia. Toda a paz e prosperidade que anunciavam nas propagandas me pareciam forçadas, além disso a cada dia cresciam as denúncias de novos membros integrantes da resistência. Também crescia apreensão de civis portando livros. A maior e mais perigosa arma de nossa época. Uma das poucas coisas que o governo proibia. Se tudo era tão maravilhoso, por que tantas pessoas se revoltavam?
   Eu não sei o motivo de ter pego um atalho diferente ao voltar para casa. Nem sei também o porquê de ter parado num beco esquisito e sem saída. A única coisa que posso dizer é que esse fato mudou toda a minha vida.
   Acabei me perdendo enquanto seguia por umas ruas aleatórias do centro da capital. Parei em um beco sem saída, onde uma sombra me chamou a atenção. Me aproximei por alguns metros e vi que a sombra se transformava em uma mulher. Ou melhor uma menina. A verdade é que não vou saber dizer muito sobre ela. O seu rosto parecia ser de um anjo. Tinha longos cabelos pretos e uma franja que caia sobre a vista. Olhos profundos de quem conhecia toda a verdade sobre o mundo. Engraçado que o mais atraente não era sua aparência, mas o fato de estar lendo um livro.
   “O que você está olhando?”
   “Ah, não é nada. Me desculpa, já estou saindo é que entrei aqui. Acho que me perdi mas não te vi lendo, quer dizer não estou aqui.”, acho que eu nunca teria terminado de falar se não fosse o desespero acabar me fazendo cair ao derrubar uma lata de lixo. Ela começou a rir.
   “Você é engraçado. É estudante?”, foi o que disse enquanto olhava minha bolsa, “Não entendo como alguém consiga acreditar naquelas bostas que ensinam, mas você parece diferente. Você falou comigo. Você insinuou ter visto o livro. A maioria das pessoas sai correndo ou não tem coragem de dizer o nome disto” disse me mostrando o seu exemplar. A capa era velha, as páginas pareciam mais antigas que o tempo. Como ela conseguira isso era um fato surpreendente. Me parecia ser inofensiva demais para fazer parte dos revoltosos. 
   “Sem querer me intrometer mas isso é crime. Você deve saber que não pode portar isso. Olha eu posso te ajudar a se livrar desse troço. Sei que deve ter achado pelo lix...”
   “Eu não sou uma coitada que achou um livro no lixo. Na verdade tenho uma biblioteca e tanto. Quanto a mim não se preocupe, eu sou grandinha e sei me virar. Posso parecer frágil mas garanto que um policial não duraria um minuto lutando comigo.” Eu engoli seco. Por essa não esperava.
   Foi quando o exterior nos atingiu. Eu estava tão hipnotizado por ela e seu sorriso meigo, que era como se o tudo tivesse silenciado e parado para nos assistir. Enquanto eu falava com ela, não existia mais ninguém no mundo. Do início da rua um barulho da patrulha pois um fim ao momento.
   “Acho que fomos interrompidos. Vem por aqui.”, disse isso enquanto me puxava pela camisa levando-nos até o muro, ela então empurrou uma caçamba de lixo e revelou um bueiro. Descemos por ele e corremos pelas alamedas do esgoto sem fim.
   Viramos por várias esquinas e tinha certeza de que tínhamos nos perdido até que ela parou.
   “Pronto! Não posso te levar mais longe do que isso mas aqui não vamos ser pegos.”
   “Nossa, você corre bem... Arf... Mal consigo respirar... Acho que você entende dos esgotos... Corre muito bem hein?”
   “Respire fundo e depois fale”, ela então riu de novo, a coisa mais mágica que já vi na vida. “Olha, eu não queria te causar problemas, e seria um problemão se te vissem comigo, e não é só pelo livro. Eu gostei de você por isso vou te avisar uma coisa. Cuidado com o que te dizem no instituto. Muitas mentiras são mascaradas com umas palavras pomposas. Tem muito mais gente sofrendo por aí do que no passado. Uma guerra enorme está rolando lá fora e ela está quase chegando aqui. Quando ela atingir os solos dessa cidade dias negros virão. Se fosse você pegaria sua família e sairia da cidade. Não sei para onde vão mas precisam dar o fora daqui. É muito perigoso mesmo. Eles precisam culpar gente, sumir com algumas pessoas, arrumar bodes expiatórios, inocentes vão ser atingidos nessa. Você parece ser legal então espero que consiga se safar do problema. Toma, pode ficar com esse livro aqui. É legal. Não precisa levar tudo o que diz ao pé da letra mas ele ajuda as pessoas a terem fé. E também abre os olhos para a realidade. Mas esconda bem, ok?”
   “Uhum.” Eu não consegui dizer muita coisa. Acho que sua voz me atordoava. Incrível como dois segundos após botar os olhos nela já estava apaixonado. Incrível como tudo tinha cor e como eu, um medroso indescritível, agora estava com um livro na bolsa.
   “Pode subir por aqui, vai parar na avenida principal.” Enquanto dizia essas palavras me apontou umas escadas velhas em ruína. Como ela disse para subir, julguei ser seguro.
   “Adeus e obrigada pelo livro. Espero te ver de novo e poder devolver ele.”
   “Espero que não nos vejamos, mas gostei de te conhecer. Você me lembra muito uma pessoa que conheci há muito tempo. Tempo demais para qualquer um dessa cidade se lembrar... Adeus guri e boa sorte!”
   Acabei saindo na avenida como ela falou. Peguei o caminho certo e rotineiro e depois me vi em casa. Quando subi as escadas para avisar meu pai que havia chegado, me surpreendi com mais visitas em seu escritório.
   “Muito bem senhor Ministro, acabamos de receber notícias dos rebeldes. Parece que a comandante geral das tropas do sul foi vista pela cidade. A presença dela aqui indica claramente guerra. O avanço deles se mostrou inevitável. Vai ser difícil conter os esforços e acalmar os civis. Principalmente essa daí. Causou muitos estragos no sul. Ela propaga ideias, e dizem que anda por ai com uns livros...”
   “Tudo bem capitão. Obrigada por me deixar ciente. Realmente com uma aparência dessas qualquer um acredita no que diz, mas nosso governo se encontra a salvo nas mãos de militares competentes como o senhor. Meu filho, demorou muito hoje, o que foi, porque esse espanto?”
   “Desculpe pai, não queria interromper a sua reunião. Eu me perdi na cidade foi só isso. Achei que já tinha visto a garota dessa foto mas era engano, por isso essa impressão.”
   “Tudo bem capitão pode se retirar, e filho, vá para o seu quarto. Mais tarde vamos ter a visita do ilustre Supremo. Quero você bem apresentável.”
   “Entendi pai. Estou subindo então. Até mais capitão.” Quando me tranquei no quarto pude parar para refletir sobre os acontecimentos e sobre como eu havia conhecido e me apaixonado por uma das líderes das forças rebeldes. Agora entendia o conselho que havia recebido. Realmente uma tempestade estava por vir. Retirei da minha bolsa o livro e observando bem consegui ler o nome. Bíblia. Um tanto engraçado.

                          

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