*Antes de começar devo dizer que essa é uma cena de uma história que vem há muito tempo habitando minha cabeça. É sobre uma garota especial e sobre o mundo em que ela vivia. E fala também sobre como ela conseguiu mudar um monte de vidas. Vai parecer meio confuso porque é só uma cena dessa história toda mas decidi escrever para o desafio desse dia*
Eu caminhava pelas ruas da Grande Nação naquele dia. Havia acabado de
sair do Instituto de Ensino onde escutei por horas seguidas a mesma ladainha de
sempre. Coisas sobre como a união dos últimos países existentes, após a grande
guerra, havia originado o nosso Estado proporcionando alimento para as pessoas famintas,
maior justiça, igualdade... Sempre a mesma história. Eu era o único naquele
lugar que não acreditava muito no que ouvia. Toda a paz e prosperidade que
anunciavam nas propagandas me pareciam forçadas, além disso a cada dia cresciam
as denúncias de novos membros integrantes da resistência. Também crescia apreensão
de civis portando livros. A maior e mais perigosa arma de nossa época. Uma das
poucas coisas que o governo proibia. Se tudo era tão maravilhoso, por que tantas
pessoas se revoltavam?
Eu não sei o motivo de ter pego um atalho diferente ao voltar para casa.
Nem sei também o porquê de ter parado num beco esquisito e sem saída. A única coisa
que posso dizer é que esse fato mudou toda a minha vida.
Acabei me perdendo enquanto seguia por umas ruas aleatórias do centro da
capital. Parei em um beco sem saída, onde uma sombra me chamou a atenção. Me aproximei
por alguns metros e vi que a sombra se transformava em uma mulher. Ou melhor
uma menina. A verdade é que não vou saber dizer muito sobre ela. O seu rosto parecia
ser de um anjo. Tinha longos cabelos pretos e uma franja que caia sobre a
vista. Olhos profundos de quem conhecia toda a verdade sobre o mundo. Engraçado
que o mais atraente não era sua aparência, mas o fato de estar lendo um livro.
“O que você está olhando?”
“Ah, não é nada. Me desculpa, já estou saindo é que entrei aqui. Acho que
me perdi mas não te vi lendo, quer dizer não estou aqui.”, acho que eu nunca
teria terminado de falar se não fosse o desespero acabar me fazendo cair ao
derrubar uma lata de lixo. Ela começou a rir.
“Você é engraçado. É estudante?”, foi o que disse enquanto olhava minha
bolsa, “Não entendo como alguém consiga acreditar naquelas bostas que ensinam,
mas você parece diferente. Você falou comigo. Você insinuou ter visto o livro.
A maioria das pessoas sai correndo ou não tem coragem de dizer o nome disto”
disse me mostrando o seu exemplar. A capa era velha, as páginas pareciam mais
antigas que o tempo. Como ela conseguira isso era um fato surpreendente. Me parecia
ser inofensiva demais para fazer parte dos revoltosos.
“Sem querer me intrometer mas isso é crime. Você deve saber que não pode
portar isso. Olha eu posso te ajudar a se livrar desse troço. Sei que deve ter
achado pelo lix...”
“Eu não sou uma coitada que achou um livro no lixo. Na verdade tenho uma
biblioteca e tanto. Quanto a mim não se preocupe, eu sou grandinha e sei me
virar. Posso parecer frágil mas garanto que um policial não duraria um minuto
lutando comigo.” Eu engoli seco. Por essa não esperava.
Foi quando o exterior nos atingiu. Eu estava tão hipnotizado por ela e
seu sorriso meigo, que era como se o tudo tivesse silenciado e parado para nos assistir.
Enquanto eu falava com ela, não existia mais ninguém no mundo. Do início da rua
um barulho da patrulha pois um fim ao momento.
“Acho que fomos interrompidos. Vem por aqui.”, disse isso enquanto me
puxava pela camisa levando-nos até o muro, ela então empurrou uma caçamba de
lixo e revelou um bueiro. Descemos por ele e corremos pelas alamedas do esgoto
sem fim.
Viramos por várias esquinas e tinha certeza de que tínhamos nos perdido
até que ela parou.
“Pronto! Não posso te levar mais longe do que isso mas aqui não vamos
ser pegos.”
“Nossa, você corre bem... Arf... Mal consigo respirar... Acho que você
entende dos esgotos... Corre muito bem hein?”
“Respire fundo e depois fale”, ela então riu de novo, a coisa mais
mágica que já vi na vida. “Olha, eu não queria te causar problemas, e seria um
problemão se te vissem comigo, e não é só pelo livro. Eu gostei de você por
isso vou te avisar uma coisa. Cuidado com o que te dizem no instituto. Muitas mentiras
são mascaradas com umas palavras pomposas. Tem muito mais gente sofrendo por aí
do que no passado. Uma guerra enorme está rolando lá fora e ela está quase
chegando aqui. Quando ela atingir os solos dessa cidade dias negros virão. Se fosse
você pegaria sua família e sairia da cidade. Não sei para onde vão mas precisam
dar o fora daqui. É muito perigoso mesmo. Eles precisam culpar gente, sumir com
algumas pessoas, arrumar bodes expiatórios, inocentes vão ser atingidos nessa. Você
parece ser legal então espero que consiga se safar do problema. Toma, pode
ficar com esse livro aqui. É legal. Não precisa levar tudo o que diz ao pé da
letra mas ele ajuda as pessoas a terem fé. E também abre os olhos para a
realidade. Mas esconda bem, ok?”
“Uhum.” Eu não consegui dizer muita coisa. Acho que sua voz me
atordoava. Incrível como dois segundos após botar os olhos nela já estava
apaixonado. Incrível como tudo tinha cor e como eu, um medroso indescritível, agora
estava com um livro na bolsa.
“Pode subir por aqui, vai parar na avenida principal.” Enquanto dizia
essas palavras me apontou umas escadas velhas em ruína. Como ela disse para
subir, julguei ser seguro.
“Adeus e obrigada pelo livro. Espero te ver de novo e poder devolver
ele.”
“Espero que não nos vejamos, mas gostei de te conhecer. Você me lembra
muito uma pessoa que conheci há muito tempo. Tempo demais para qualquer um dessa
cidade se lembrar... Adeus guri e boa sorte!”
Acabei saindo na avenida como ela falou. Peguei o caminho certo e
rotineiro e depois me vi em casa. Quando subi as escadas para avisar meu pai que
havia chegado, me surpreendi com mais visitas em seu escritório.
“Muito bem senhor Ministro, acabamos de receber notícias dos rebeldes. Parece
que a comandante geral das tropas do sul foi vista pela cidade. A presença dela
aqui indica claramente guerra. O avanço deles se mostrou inevitável. Vai ser difícil
conter os esforços e acalmar os civis. Principalmente essa daí. Causou muitos
estragos no sul. Ela propaga ideias, e dizem que anda por ai com uns livros...”
“Tudo bem capitão. Obrigada por me deixar ciente. Realmente com uma aparência
dessas qualquer um acredita no que diz, mas nosso governo se encontra a salvo
nas mãos de militares competentes como o senhor. Meu filho, demorou muito hoje,
o que foi, porque esse espanto?”
“Desculpe pai, não queria interromper a sua reunião. Eu me perdi na
cidade foi só isso. Achei que já tinha visto a garota dessa foto mas era
engano, por isso essa impressão.”
“Tudo bem capitão pode se retirar, e filho, vá para o seu quarto. Mais
tarde vamos ter a visita do ilustre Supremo. Quero você bem apresentável.”
“Entendi pai. Estou subindo então. Até mais capitão.” Quando me tranquei
no quarto pude parar para refletir sobre os acontecimentos e sobre como eu
havia conhecido e me apaixonado por uma das líderes das forças rebeldes. Agora entendia
o conselho que havia recebido. Realmente uma tempestade estava por vir. Retirei
da minha bolsa o livro e observando bem consegui ler o nome. Bíblia. Um tanto
engraçado.
0 comentários:
Postar um comentário