Era um dia nublado
e Antônio estava caminhando devagar, atrapalhando as crianças que andavam de
bicicleta na calçada. Ao sair da escola, no dia anterior, ele havia encontrado
um caderno jogado no chão, bem no funda da classe. Ao pegá-lo como intuito de
descobrir o dono, viu que se tratava de um caderno repleto de poesias e
citações famosas. Também tinha algumas histórias e colagens. Não havia nada que
denunciasse o dono, mas logo desconfiou de quem poderia ser: Susana.
Fazia séculos que
ele observava Susana, ela que sempre era uma menina quieta e soturna. Passava o
tempo todo da aula escrevendo ou lendo qualquer coisa que não fosse referente à
matéria. Ela sempre sentava ao fundo da classe, na cadeira do canto esquerdo,
perto da janela. O caderno jogado ali definitivamente era dela. Apesar de ter
vergonha de assumir, Antônio já havia perguntado uma porção de coisas sobre a
menina para os outros, sabia tudo o que era possível saber sobre Susana. Onde
ela gostava de sentar no recreio, os livros que ela pegava na biblioteca, as
notas que tirava e inclusive seu endereço. O local de sua moradia foi arrancado
de uma das meninas da classe que tinham marcado um dia de buscá-la em casa para
realizarem um trabalho juntas na biblioteca. Ele não podia evitar, era o seu
primeiro amor.
Ele então estava se
dirigindo para lá. Acordou mais cedo no sábado, arrumou-se e treinou na frente
do espelho as palavras exatas para usar. Ainda que nervoso, sentia-se corajoso
o suficiente para realizar a empreitada. Quando chegou ao exato número tocou a
campainha. Não tardou muito uma menina alta e magra, de compridos cabelos
negros que desciam até abaixo da cintura e uma pela branca como porcelana
atendeu. Susana sempre o deixava nervoso. Ele gaguejou o que tinha vindo fazer
ali e ela perguntou se queria entrar.
“Desculpa a intrusão,
mas é que achei esse caderno na escola e desconfie que fosse seu. Não quero
incomodar, já vou indo.”
“Não se preocupe,
não vai ser incomodo ter você aqui.” Ela então o guiou por um corredor escuro,
repleto de fotografias e quadros nas paredes. “Vai, entra aí”, falou apontando
para um cômodo.
“Esse é o seu
quarto?”
“É sim. Sei que é
meio esquisito, mas gosto dele desse jeito.”
O quarto parecia um
lugar fora do universo. As paredes pintadas de preto repletas de frases em
prata. Aos fundos um mural de imagens de uma menina com um coelho branco,
depois a mesma menina conversando com um gato no alto de uma árvore. Imagens de
uma garota entalada em uma casa com os braços se projetando pelas janelas, essa
menina se repetia em diversas imagens e ocupava toda a parede aos fundos do
quarto. Dividindo a decoração se via uma estante repleta de livros e ao lado
uma escrivaninha pequena com a foto de uma bela mulher. Essa mulher era uma
versão mais velha de Susana, linda e sorridente. Junto do retrato havia flores
e alguns livros. Em pequeninos porta retratos se via a foto dessa mesma mulher
abraçada em uma menina, que muito podia ser confundida com a Branca de neve de
tão branca com bochechas vermelhas.
“Olha aquela moça
ali é sua irmã?”
“Não, ela era a
minha mãe.”
“Poxa a sua mãe é
bem bonita. Ela trabalha com o que?”
“Ela morreu quando
eu tinha 10 anos.”
Tudo que Antônio
conseguiu fazer foi manter o silêncio. Respirou fundo e tomou coragem para
retomar a conversa e tentar consertar o constrangimento.
“Desculpa não quis
te... Quer dizer sinto muito.”
“Tudo bem. Eu sei
que não fez por mal.”
“Você tem um quarto
bem bacana com essas imagens e esses livros e aquela frases ali.”
“Obrigada. Esses
eram os livros favoritos da minha mãe, e aqueles dali na mesa são os que ela
escreveu. Ela era escritora. Eu deixo no canto como se fosse um altar para ela.
São o bem mais precioso que tenho. Quanto as frases, são citações famosas que
minha mãe deixava marcada nos cadernos dela ou nas páginas dos livros. Já as
imagens são desenhos do Alice No Pais da Maravilhas, era a nossa história
favorita. Fizemos essa colagem quando eu era criança. Eu não quis apagar quando
ela morreu mas tirei as paredes alegres cor de rosa e pintei de preto para mostrar
o meu luto.”
“Você era bem
ligada com sua mãe não é?”
“Éramos melhores
amigas...”
“É por isso que
você é sempre tão quieta na escola e está sempre com uma cara de choro?” ela o
encarou com os olhos arregalados, “Olha desculpa, não queria me intrometer.”
“Ok, sem problemas.
Sim eu sinto muita falta dela, acho que isso teve um reflexo negativo no meu relacionamento
interpessoal, ou pelo menos foi o que a minha médica disse. Minha avó fica
maluca de me ver pra baixo e me obriga a fazer sessões de psicanálise há uns
três anos.”
“Que merda.”
“Pois é.”
“Você mora com
ela?”
“Não eu vivo com
meu pai. É meio difícil encontrar com ele por aqui, ele foge de mim, da casa e
de qualquer coisa que lembre a minha mãe. Já eu sou o contrário. Enquanto ele
foge de tudo eu virei uma obcecada pela memória de minha mãe.”
“Se é o seu jeito
de lidar com o luto eu não vejo nada de mal nisso.”
“Tirando que é um
luto meio prolongado... minha médica disse que preciso fazer amigos, e o meu
pai está me atormentando por isso. Ele ameaçou jogar as coisas dela fora se eu
não mudasse, então deixei meu caderno de propósito e prometi para minha mãe que
faria amizade com a primeira pessoa que o encontrasse. Ainda bem que foi você e
não nenhuma daquelas meninas chatas.”
“Que bom. Eli umas
coisas do caderno então desculpa. Péssimo início de amizade.”
“Tudo bem não era
nada secreto mesmo. É o meu caderno de inspiração e treino. Eu quero um dia ser
escritora como a minha mãe. Se eu ficasse com raiva de alguém ler seria um péssimo
início de carreira, no futuro eu vou ser lida e criticada mesmo não?!”
“Achei tudo muito
bom. Meio melancólico pro meu gosto, só que bacana. Vai fazer sucesso um dia,
principalmente entre a galera deprimida e gótica.”
Susana então riu,
e Antônio percebeu que era a primeira vez que via essa garota sorrir. Fez então
uma promessa mental de nunca mais deixar essa garota sofrer. Ele prometeu ficar
do lado dela e acabar com toda aquela tristeza e solidão que a mãe causou a
partir.
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